quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Sobre o Poder Local - José Maia Marques

Michel Koebel escreve, no início das conclusões da sua importante obra Le pouvoir local ou la démocratie improbable, (Broissieux: Éditions du Croquant, Janeiro de 2006): “Num contexto mediático onde cada vez mais se nota o fosso que separa os profissionais da política dos simples cidadãos, a política de descentralização é muitas vezes apresentada como o remédio milagroso. Mas a incapacidade dos representantes políticos em acabar com a crise económica aumentou o sentimento de desconfiança em relação a eles, apoiada na mediatização dos «casos». Por muito tempo poupados, os eleitos locais não estão já imunes. O desinteresse pela política que podemos medir, entre outros, pela taxa de abstenção nas diversas eleições, tem aumentado constantemente […]. Os eleitores sentem que os eleitos já não são capazes de defender os seus interesses, ou que defendem mesmo os interesses de uma escassa minoria”.
Este «diagnóstico», desenhado para a realidade francesa é, creio eu, plenamente aplicável ao caso português.
Por isso, e admitindo mesmo (como eu admito e tenho como certo) que o Poder Local é uma das mais importantes conquistas de Abril, e um dos pilares da afirmação democrática, ao fim de mais de trinta anos de exercício, é necessário corrigir desvios e acompanhar as constantes mudanças de paradigmas que a nossa sociedade atravessa.
E há coisas que eu considero fundamentais e urgentes.
Uma delas é a limitação de mandatos. Como alguém afirmava, não se é autarca, está-se autarca. O que é radicalmente diferente. E a melhor forma de normalizar este princípio básico é limitar os mandatos. No meu entendimento, considerando um ciclo politico-cronológico para o cumprimento de um projecto de envergadura, o ideal seria um limite de dois mandatos de cinco anos. Dez anos é muito tempo (como cantava Paulo de Carvalho), mas é suficiente para se submeter a sufrágio um programa, ainda que ambicioso, pô-lo em prática e conclui-lo. É que esta questão do programa é fulcral.
Os nossos autarcas têm de capacitar-se que estão a prestar um serviço por delegação dos eleitores. Delegação essa que lhe foi confiada pelo sufrágio de um programa. E que por isso os eleitores os autorizam apenas a cumprir esse programa. Se querem desviar-se dele, ou rasgá-lo, deixam de ter legitimidade para governar se não consultarem novamente o eleitorado. Quem não pensa assim é um sério candidato ao lugar de «cacique».
Outra questão prende-se com a forma de eleger o executivo. Tenho para mim que o executivo, a manter-se o mesmo esquema de hoje, deveria, à semelhança do que acontece com a Juntas de Freguesia, ser eleito no seio da Assembleia Municipal, impendendo sobre o líder da candidatura mais votada a responsabilidade de chefiar o executivo. A Assembleia Municipal seria um verdadeiro parlamento, deveria ver reforçada a sua capacidade fiscalizadora sobre a Câmara, e o Presidente de Câmara indigitado teria toda a liberdade para escolher, de entre os seus pares na Assembleia, os seus colaboradores.
Mas antes de se estabelecer este princípio, seria necessário reflectir sobre se este sistema será ou não o mais adequado para a nossa realidade. Há quem defenda que, como em França, se apresentassem (com o apoio de partidos, de organizações ou individualmente) os candidatos, e que o vencedor escolheria livremente de entre todos os cidadãos aqueles que fariam parte do executivo. Confesso que sobre este ponto não tenho ainda uma opinião sólida, tanto mais que a realidade francesa (onde não há «freguesias», onde os «concelhos» são frequentemente de pequena dimensão e onde há vários estádios intermédios, como as interessantes communautés de communes) é substancialmente diferente da portuguesa.
Outro aspecto a ponderar é o da Lei das Finanças Locais. Como afirmava V. Dias no Blog «O Cerejal» em Junho de 2006, “…é preciso deixar absolutamente claro que a participação das autarquias nos recursos públicos é uma consequência constitucional da organização do Estado e não nenhum favor, gesto de boa vontade ou expressão de generosidade do Estado (entendido aqui como a Administração Central)”. Ora, temos assistido nos últimos tempos a um gradual aumento de transferência de competências para as autarquias locais, sem o correspondente respaldo em termos de financiamento. Para além disso, sabemos bem que apesar de todas as vozes contrárias, obra que o Estado faz por um milhar de euros, uma Autarquia faria por oitocentos, ou menos. Além disso, convém não esquecer que, segundo rezam os números, a parcela dos recursos nacionais gerida em Portugal pela administração local e regional é de 8,3 por cento, contra um valor médio de 21,9 por cento no conjunto dos países da OCDE. Que os fundos municipais que já representaram 2,27 por cento do PIB em 1980, em 2001 só representavam 1,65 por cento. E que as autarquias locais, com apenas 10 por cento das receitas do Estado, são responsáveis por cerca de 50 por cento do investimento público em Portugal. Ah, e já agora, que em 2003 o peso da contribuição das autarquias locais para a tão mediática dívida pública era de 0,11 por cento e que, no défice público para 2006 (6,7 por cento), a parcela de «culpa» das autarquias não ultrapassava os 0,1 por cento.
Números que dão que pensar e que não podem senão levar-nos a encarar a gestão municipal, ainda que em geral, de uma forma bem diferente do que apregoa o actual governo.
Claro que não podemos ficar por aqui. Muitas freguesias são como que «reféns» das Câmaras, e isto não pode continuar. A afinação nos vasos comunicantes tem de fazer-se a montante como a jusante.
Mas esta contribuição já vai demasiado longa, e no debate que se deseja teremos quiçá oportunidade de aduzir mais contribuições.

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