quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Sobre o Poder Local - Serafim Nunes

O conhecimento que tenho das alterações que PS e PSD se propõem introduzir no edifício legal que enquadra o poder local restringe-se ao que vem sendo, esparsamente, aflorado na imprensa, circunstância que não me permite uma abordagem crítica dos seus propósitos, pelo que me centrarei no que sobre o poder local penso, desde há muitos anos, retirando os leitores, por contraponto, e a seu tempo, as conclusões que entenderem.
Desde o 25 de Abril que nos vários discursos dominantes, tanto á esquerda como à direita, as virtualidades do poder local colhem uma quase unanimidade, o que confesso sempre me surpreendeu. E sempre me surpreendeu porque, sendo a essência do poder local a aproximação dos agentes e das instituições do poder aos cidadãos - uma pró “sovietização” do poder, diria, admito que com algum exagero -, nunca percebi bem, senão o entusiasmo, pelo menos a parcimónia da direita para com o mesmo.
Evoluções e experiências recentes neste campo, quer em Portugal – refiro-me à situação recentemente criada em Lisboa à volta do designado orçamento participativo – quer nalguns países europeus e sobretudo sul-americanos, começam a demarcar claramente os campos, tornando melhor perceptíveis os pensamentos de um e de outro campo e cavando o fosso ideológico que os separa nesta matéria.
De facto, difícil seria esperar que a direita visse com agrado o complemento da democracia representativa com o alargamento da participação dos cidadãos, indissociável de qualquer processo de aprofundamento do poder local. Para a direita a democracia cinge-se à representação e a participação dos cidadãos é desdenhada e vista sobretudo como uma ameaça.
Um dos textos mais significativos de que me recordo em que é visível este desdém, encontrei-o justamente há cerca de três anos num documento produzido pela Câmara Municipal da Maia, nas Grandes Opções do Plano e Orçamento para 2005, a páginas 3 do referido documento.
Diz-se aí: “Assim, a agenda do Município é sempre ditada pelas ideias da Câmara, pelos planos, pelos projectos e pelos programas que lança, com coerência e visão. Por isso é que, quase sempre, após o conhecimento público das intenções da Câmara estas vêm a ser adoptadas pelos vários sectores da população, tornando-as como suas, apoiando-as e passando a constituir sua pretensão ou objectivo.” - o sublinhado é meu.
Ou seja: Segundo a nossa direita local, e atrever-me-ia a generalizar à direita em geral, os eleitos não auscultam as necessidades, aspirações e propostas das populações para dar solução aos problemas que as afligem. Não. As populações submetem-se e convencem-se da bondade das propostas dos seus iluminados representantes. E agradecem, faltou acrescentar.
Esta concepção está, ou deverá estar, nos antípodas do pensamento e da prática política da esquerda. È justamente nas aspirações e nas necessidades dos seus representados, as populações, muito particularmente das mais desfavorecidas, das excluídas, que constituem a sua razão de ser, que a esquerda deve beber os seus programas e propostas políticas. Indo mais longe. Fazendo-as participar na identificação das necessidades, na definição das prioridades e na elaboração das propostas de solução. Incentivando a vigilância e controlo sobre os seus representantes. Incentivando o “pedido de contas” e a responsabilização. Promovendo, no fundo, a cidadania, em conformidade com o que no-la propuseram os filósofos gregos – como condição para que o homem possa, em vez de limitar-se a viver, aspirar a uma vida boa (citando Carlos Fernández Liria, em Educación para la Ciudadania, Akal).
O desdém da direita pela participação cidadã é indissociável do temor que tal participação lhe causa, da concepção elitista da política que a caracteriza, da política como “chatice” e não como estádio superior do exercício da cidadania, de algo a que de bom grado se furtaria e evitaria.
Ao cara a cara permanente com as populações, principalmente com as mais desfavorecidas, com as excluídas, a direita prefere, e preferirá sempre, o distanciamento das instituições e das suas rotinas. A direita sente-se melhor defendida pelas rotinas da representação, que sabe serem-lhe favoráveis ou nelas não tivesse um papel determinante o poder económico – lembremo-nos do quanto custam as campanhas eleitorais que determinam cada vez mais a representação - e sabe bem que tem tudo a perder num poder cada vez mais próximo dos cidadãos, cada vez mais de olhos nos olhos, cada vez mais cara a cara.
Basta lembrar o verdadeiro pavor que sempre lhe suscitaram as associações e comissões de moradores e todas as outras formas de organização popular surgidas na sequência do 25 de Abril. Em vez de reconhecer a sua utilidade e corrigir os seus excessos, que se reconhecem, embora muitas das vezes empolados, a direita serviu-se justamente deles para as liquidar, porque pura e simplesmente as detestava, porque cedo percebeu que o seu desenvolvimento e aprofundamento colidia frontalmente com os seus interesses.
Aqui chegado, e para que não se suscitem quaisquer dúvidas, quero dizer que não se trata de substituir ou enviesar a democracia representativa. Se há ensinamento que da história recolhi, foi o de que por mais nobres e generosos que sejam os ideais dos que lutam para a transformação do mundo no sentido de uma maior equidade, por maior que seja a sua pressa, a legitimidade do poder deverá radicar sempre, repito, sempre, na livre expressão da vontade popular e na livre associação dos cidadãos e não em quaisquer vanguardas ou militâncias. Ou seja, na democracia representativa. Do que se trata é de, justamente na perseguição de uma cada vez maior cumplicidade entre cidadãos representados e representantes, rasgar caminhos a uma maior e melhor cidadania.
Regressando ao tema, se é que dele me afastei, diria pois que pela minha parte serão bem-vindas todas as alterações legislativas que vão no sentido alargar o poder local - estou a referir-me às regiões, por exemplo -, todas as alterações que aproximem o poder dos cidadãos, todas as alterações que incrementem a participação cidadã na actividade e decisão políticas. Convicto de que desta participação, a prazo, só poderá resultar melhor cidadania, mais solidariedade, maior igualdade, mais humanidade. E não obstante os numerosos exemplos que, infelizmente, parecem por vezes apontar em sentido contrário e fazer desacreditar tal caminho.


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